sábado, 23 de junho de 2007

Saga da vida real ou o atendimento atencioso, alegre e devotado do Hospital de Cascais

Cascais. Passam 17 minutos de um dia novo, de horas ainda vazias. Desço por uma rua estreita ao quadrado, atulhada de lixo, seguindo, desconfiada, o que parecem ser as indicações concordantes de toda a população quanto ao caminho a seguir para o Hospital. Que se imagina quando se fala de Hospital? Porventura um edíficio grandioso, glorioso de cheiros variados em mistelas explosivas, uma azáfama incompleta de macas, gentes ocupadas, gemidos lancinantes, urgências apinhadas de gente moribunda, médicos empenhados, bebendo café enquanto resolvem quebra-cabeças da medicina. Vá, a imagem fiel do que se vê num qualquer filme americano. Ou na mais recente e aclamada versão da medicina em casa, House. Derrubando quaisquer expectativas, este Hospital é sem dúvida peculiar. Nas “urgências”, uma senhora de 50 anos, magérrima de fumo, é claro, dourada de vestes, cabelos e perucas e coisas afins, espera pela consulta como quem aguarda um convite para uma festa social. Este local de espera consiste num pequeno corredor, encostadas cadeiras de várias nações, cores e feitios ao longo das paredes (inclui-se aqui, atenção, dois bancos corridos de madeira do género cartedral de convento), uma pequena (senão mesmo mínima) televisão que alonga testas e encurta corpos (suponho que o ingrediente humorístico da cela de adoentados), uma máquina repleta dos mais variados petiscos gordurosos, transgénicos, açucarados e outros que tais bons para a saúde e duas casas de banho, nada de misturas de sexos, com aroma de que não recebem limpeza há, por certo, mais de 2 horas (já que parece ser esta a lei nos centros comerciais). Apesar da aflição, e estando eu com suspeita de uma infecção urinária, nem me atrevi a lá entrar. Aguardo 30min. Sacos de plástico, envólucros de donuts, papéis ranhosos irrompem intermitentemente pela porta escancarada do hospital. Começo a sentir-me engripada. Eis que chamam, numa voz inevitavelmente anasalada e estranhamente superior. Empurro portas, percorro corredores, espreito por portas pútridas, e ninguém, ninguém chama por mim. Primeira vivalma que encontro não é um médico mas um segurança. Depois de indicações por demais evasivas, encontro-me na devida salinha. Surruram dois médicos, um espanhol e um brasileiro, acerca de uma senhora que jaz, imóvel e inchada de doença, numa maca no corredor: “Pois, não sei que terá ela...(1) Queixa-se, queixa-se e não é capaz de apontar nenhum sintoma específico...(2) Mande-mo-la para casa! (1­e 2). Alguém informa a senhora de que tem alta e então é o pandemónio, senhora agarrando os lençóis grita: “Estou doente, não posso saír”, enfermeiro diz: “Mas em casa está mais cómoda!”. Enfim...Minha vez. Explico, sumariamente, em não mais de 2 minutos, o meu problema. O meu problema era não saber se existia problema, logo estava naturalmente à espera de uns testes. Passados um minuto e meio, o espanhol, que durante o meu breve discurso olhava, dístraído, para a parede branca por detrás de mim, seco, bruto, de bigode grisalho (carreira secundária: toureiro), prescreve imediatamente um antibiótico. Ora eu, sabendo-me sensível ao dito medicamento, logo reclamei que tivera febres alucinógeneas da última vez que o tomara (daquelas que encurtam e alargam aleatoriamente as divisões da casa, fazem subir o chão e descer o tecto, simulam vozes dizendo coisas impossíveis, multiplicam os sons do género twilight zone). O médico logo riposta, gritando (sim, gritando!): “Nenhum medicamento causa febres, isso são tudo manias!”, etc. etc (quando na bula da tal Ciprofloxacina Ratiopharm (Diabólico comprimido!), os efeitos secundários incluíam febres, e, pior, a morte (hihih). Muito mal encarado prescreve outra coisa, acerca da qual pergunto se não interfere com a pílula. Mais outra gritaria: “Nenhum medicamento interfere com a pílula, vocês são uns ignorantes!” Bla bla bla. Timidamente, pergunto se não será melhor fazer testes, para ter a certeza se estarei ou não com a dita doença de que me queixei vagamente (já a tive, sei do que falo). Cúmulo final, gritaria derradeira em como eu estava a pôr em causa a competência do senhor doutor (e se não estava!).
Pergunto-me: fora eu uma velhota que não faria pergunta alguma e a minha consulta de 8 euros (sim, aumentou!), seria em suma um falatório de 1 minuto e meio e uma perscrição muito provavelmente errada. No dia seguinte, reuniria as minhas pobres poupanças e compraria o antibiótico na farmácia mais próxima. Dois dias depois, morro de febres alucinogéneas na minha cama, só, sem nenhuma companhia.

Negligência médica?

(sorry,estendi-me!)

4 comentários:

Anônimo disse...

Um atendimento carenciado, alguns prazos expirados (casas de banho) e pensamentos científicos mas alugados e mecânicos. A Clara é fixe porque gosta de música buéda fixe e escreve palavras inteligentes. Viva a urbe!

Anônimo disse...

Aqui estou eu outra vez de passagem no teu santuário em formato blogosférico. Desculpa a ausência (são os deveres académicos) e Viva o atendimento público! Mais uma vez eu não consigo deixar de evitar repetir-me e elogiar a tua fantástica "veia cronical" (repetindo-me e volto a dizer: aposta nela!). E quem sou eu para criticar-te mas pareceu-me que, se não fora propositado, usaste e abusaste dos parênteses (vindo de um viciado no dito cujo) ...
Eu já ouvi muitos testemunhos e também já senti na pele casos de pequenos abusos médicos e burocráticos, mas sinceramente acho que faltou pouco para seres esmurrada pelo "nuesto vecino". Fiquei completamente chocado (tu disseste que ele gritou?; efeito secundário morte?) com a tua experiência! Um caso desses merecia ser ouvido judicialmete, mas como estamos no nosso querido Portugal digamos e continuaremos a dizer que:"não vale a pena... isso nem daqui ha 15 anos está resolvido..."
Não sei se isto será despropositado ou rude mas eu não consigo deixar de perguntar-me quem tu és... Que fazes? És de onde (Cascais?)? Estás melhor da tua possível infecção?
Para ser justo o meu nome é Miguel, estudo na Faculdade de Belas Artes do Porto (Design de comunicação) tenho 19 anos, e felizmente nunca tive uma possível infecção urinária...

clara disse...

Olá Miguel!

Prezo muito os teus comentários, saibas tu que naturalmente me alegram :) tentarei desenvolver a "veia cronical". Muitos temas me prepassam a mente, simplesmente não chegam a passar para o papel electrónico... talvez um dia seja mais fácil, quando inventarem algo do género "telepatia da escrita".

Gosto de parêntesis! acrescentam, explicam, redimem o restante texto oco. São um mundo outro de possibilidades despercebidas ao texto dito principal.

Não acho o teu "pedido" despropoditado de todo! Para dizer a verdade, sinto-me mais confortável sabendo (se é que se chama saber a estas informações intitucionais que dizem sermos nós (hei-de escrever sobre isso...)) quem és. Miguel, 19, Design de Comunicação nas Belas Artes do Porto, eu sou a Clara, 18, Arquitectura na Faculdade de Arquitectura de Lisboa. Partilhamos o amor à arte. Escrita, pintada, mas antes de mais expressa, suponho. Moro em S.Pedro do Estoril, no que dizem ser a linha. Bonito lugar. Não me julgando apresentada, respondi às tuas perguntas :) Quanto à possível infecção, de facto estagnou, estou muito bem, obrigada! Felizes os que nunca passaram por isso.

Saudações!

clara disse...

Querida Inês da música harmoniosa e palavras pensadas!
Muito obrigada*